
A luta identitária ao longo do tempo logrou seus êxitos na esfera da particularidade e, não nos resta qualquer dúvida quanto a importância que isso representa a tantas singularidades espalhadas pelo Brasil. Vejamos, por exemplo, com relação à questão racial e a educação.
Acaba de ser aprovado o aumento no número de cotas que passarão de 20% para 30% (Agência Brasil). São mais oportunidades de ingresso no ensino superior para uma população que historicamente esteve de forma deliberada excluída do acesso à formação acadêmica. Um outro exemplo positivo no mesmo seguimento é que de 2012 até 2022 houve um aumento de 167% em ingressos no ES por meio de cotas (INEP).
Conquistas assim podem ser listadas em outras áreas, representando de forma factual o que poderia ser interpretado como um avanço em direção a solução desse problema. Veremos que tal esperança é um grande equívoco. Mesmo com todo o empenho e seriedade de tantas pessoas que literalmente dedicam suas vidas nessas lutas e enfrentamentos diários, a realidade é dura. Os dados também aqui, evidenciam a calamidade que segue crescente e ofuscada em certa medida por conquistas pontuais.
Em 2017 o IBGE mostrou que das pessoas com idade acima de 25 anos que haviam concluído o ensino superior, 29% eram brancas e apenas 9,3% eram negras. De 2010 até 2019, segundo o IBGE, o número de negros matriculados nas universidades aumenou espantosos 400%. Porém, esse crescimento representa apenas 38% do total de matrículas, num país em que 56% da população é negra. Percebamos que aquelas vitórias apontadas inicialmente, parecem cada vez mais estarem limitadas, circunscritas dentro de uma lógica que prevalece a mesma. É como se apesar de toda a luta identitária que tem logrado conquistas particulares, não impactasse na totalidade do problema, não refletisse na sua resolução definitiva.
O sistema carcerário brasileiro também nos revela algo na contramão da luta identitária. Em 2022 apenas 30,4% dos presos eram brancos, enquanto 68,2% eram negros. Em 2023 o cenário não muda, revelando que quase 70% da população carcerária é negra. O crescimento total da população negra encarcerada desde 2005 supera os 381% (FBSP). Ou seja, nossa sociedade segue mantendo seus cárceres como predominantemente gaiolas para pretos, que geralmente são pobres.
As pessoas trans que também travam uma luta diária na esperança de dias melhores através do Estado, recebem da realidade um duro golpe. De 2022 para 2023, o número de assassinato de pessoas trans cresceu mais de 10% (ANTRA). A expectativa de vida das pessoas trans em 2022, pasmem! Era de apenas 29,5 anos. Quando cruzamos os dados encontramos outro número preocupante: mais de 79% das pessoas trans assassinadas eram negras ou pardas.
Os números, como vimos, são lastimáveis ao mesmo tempo que indignam qualquer um com o mínimo de sensibilidade. O que muitas vezes não é considerado pelas lutas identitárias, é que por trás desses números reside um fundamento material-econômico indissociável da luta de classes. A tragédia a que assistimos tem suas bases numa hiper exploração da classe trabalhadora em seus diversos matizes. Num capitalismo em crise estrutural que aprofunda de modo extremo como nunca visto antes a desumanização do ser social. Reside assim, nessa matriz societária, os fundamentos últimos do racismo, da xenofobia, transfobia etc.
Não se trata aqui, obviamente, de uma contraposição ao identitarismo e suas particulares conquistas. Mas precisamos estar sempre alerta para não confundirmos avanços singulares dentro do próprio modelo capitalista, como se fossem passos para a solução definitiva do problema. É importante também termos ciência de que, não obstante o valor individual que tem o ingresso no ensino superior para um preto trabalhador, a luta pelas cotas, por exemplo, reforça a lógica capitalista. Isso na medida em que reivindicar cotas é aceitar o que o capitalismo pode oferecer: uma esmola. Igualmente, devemos ter atenção com os reflexos que isso pode causar nos trabalhadores: o esfriamento da luta. Não seria a primeira vez na história que o capitalismo partilha algumas migalhas com o povo para esmaecer a pressão popular e esvaziar os movimentos que se pretendem revolucionários.
Repetimos, não se trata de ser contra as pautas e movimentos identitários, mas é preciso ter consciência dessas relações, sob pena de sucumbir completamente aos interesses do capital quando se crê piamente que se está combatendo-o.
Ante isso, foram essas as conquistas obtidas por tanta luta e dedicação de pessoas sérias: o crescimento de uma tragédia anunciada. Esse é o limite da luta identitária que vislumbra melhorias através de políticas públicas sem ter no horizonte a superação do próprio Estado, desse modelo de produção e tudo que lhe é próprio. A esperança de que juntando pequenas conquistas pessoais se atingirá o fim do racismo, da transfobia etc, é um tremendo erro. A totalidade não é a mera soma das partes.
Estejamos juntos, pensemos melhor as estratégias. Certamente há mais pontos convergentes do que diferenças entre nós.