Magia e religião: dois momentos da mesma visão de mundo

Por Quaark

11 de fevereiro - 2024

Imagem: Segs

Geralmente, quando ouvimos falar de magia, lembramos das bruxas da idade média, dos feiticeiros, da “magia negra”, de grupos ocultistas, quase sempre com uma conotação negativa. Quando não é isso, nos vem na imaginação produções cinematográficas que envolvem o tema da magia, na maioria das vezes fazendo distinção entre uma magia boa e outra ruim, retratando uma dualidade muito antiga.

Por outro lado, no cotidiano a religião é costumeiramente associada com algo positivo, um meio através do qual supostamente se pode melhorar a humanidade e formar cidadãos. Aqui no Brasil desde de 1997 que o FONAPER vem sustentando a necessidade do ensino religioso nas escolas públicas sob o argumento de que tal disciplina é fundamental para a formação do indivíduo como cidadão e moralmente bom.

Ou seja, para a grande maioria dos indivíduos em suas vidas cotidianas, religião é algo muito distante de magia, polos opostos sem qualquer possibilidade de aproximação. Imagine só um católico conceber que a santa missa é um ritual mágico? Nem de longe o devoto cogitaria tal possibilidade, lhe pareceria completamente improvável e uma grande ofensa à doutrina apostólica romana.

Mas essa junção que para o religioso moderno, como o católico, parece impossível, é uma realidade e uma característica das religiões. Na história das sociedades, religião e magia caminham de mãos dadas. Vejamos isso um pouco mais de perto.

Para começar, religião e magia nascem no trabalho. Vale lembrar que por trabalho entendemos o processo pelo qual a humanidade, mediante necessidades materiais, age sobre a natureza exterior buscando atender aquelas necessidades. Nesse processo, a natureza é modificada, assim como a própria humanidade.

É no trabalho tal como descrito acima que surge o reflexo religioso, ou se preferir, um modo religioso de ver o mundo. Conforme a humanidade, em seus primórdios, se confrontava com a natureza para atender suas necessidades mais imediatas, se deparava com as forças naturais que naquele contexto de baixo desenvolvimento intelectual, eram incompreensíveis.

Assim, aos ventos que sacudiam as árvores, às águas que precipitavam-se sobre as matas ou serpenteavam nos rios, etc, a humanidade suspeitou da existência de alguma força, de algum poder não material que afetava a natureza ao seu redor. É aqui a gênese dos deuses, das divindades e todas as forças materiais, da mesma forma, é daqui que surgem as práticas que visam de alguma forma controlar essas forças.

A magia, portanto, as manifestações ou práticas mágicas brotam exatamente nesse contexto e, como já dissemos, estas constituem-se como parte do reflexo religioso, do modo religioso de ver o mundo. Ao longo da história diferentes povos desenvolveram práticas mágicas distintas, que alguns estudiosos agrupam sob denominações diversas conforme suas características.

Por isso temos o animismo, o xamanismo, entre tantas outras. O que distingue umas das outras são características como ritual, a forma de relação entre os povos e essas forças imateriais, entre outros traços. Por exemplo, alguns povos acreditam que qualquer objeto, uma vestimenta, por exemplo, que tenha tido contato com o corpo de uma pessoa, continua infinitamente como parte desse corpo, de modo que qualquer ação imprimida contra esse objeto, se estará atingindo igualmente aquele corpo com o qual este objeto esteve em contato.

Já outros povos, acreditam que apenas partes do corpo podem ter esse efeito, como por exemplo, unhas, cabelo, dentes, etc. Através de alguns estudos antropológicos, podemos constatar o enorme cuidado que alguns povos têm para com essas partes de seus corpos, cuidando para que jamais estas possam cair nas mãos de qualquer pessoa. O entendimento é que, uma vez que uma unha, por exemplo, caia nas mãos erradas, seu possuidor pode causar os mais terríveis males àquele a quem pertencia a unha originalmente.

Esses povos, cada um à sua maneira, desenvolvem técnicas específicas de manipulação desses objetos, entre outras coisas fazem parte dessas técnicas o emprego de cantos, cerimônias diversas, etc. Já outros grupos, desenvolvem processos mágicos pelos quais aprisionam, segundo suas crenças mágicas, certos espíritos em determinados objetos, para assim ter o controlo sobre estes, utilizando-os para diversos fins, inclusive com papel bélico.

Mas o que religião tem a ver com essas práticas mágicas? Como não há espaço para aprofundar o tema aqui, podemos dizer que a religião é a magia superada. Dito de outro modo, no primeiro momento a magia era o reflexo religioso dominante, passado um longo e contraditório processo histórico, essa prática mágica se complexifica e se refina, assumindo características do que hoje conhecemos como religião.

Mas ao passar a ser o reflexo religioso dominante, a religião não suprime a magia. A superação das práticas mágicas pela religião moderna é dialética, assim, a religião passa a ser a forma predominante de manifestação do reflexo religioso mas preservando no seu interior muitos aspectos da magia mais primitiva que já existiu.

O catolicismo, por exemplo, guarda muito da magia em suas práticas. A santa missa, só para pegar uma das celebrações católicas, é repleta de magia, como a consagração da hóstia. Nesse momento, o sacerdote católico invoca um ser/poder imaterial que governa tudo e todos: deus; mas essa invocação não tem por objetivo ter ali no altar a presença desse deus tal como este o é para a imaginação dos fiéis, mas sim fazê-lo presente na hóstia, um objeto feito de trigo.

Tal prática é idêntica a executada desde os primórdios da humanidade, pelos povos que tinham como forma de reflexo religioso a magia. Invocar um deus, fazendo-o que se faça presente em um objeto, como um amuleto, é algo completamente mágico.

Continuando com nosso exemplo, depois de “aprisionado” em um objeto de trigo, esse deus é comido pelos fiéis. Os católicos se alimentam de seu deus, para que assim, esse deus possa fazer parte de cada um que dele se alimentou, causando nestes os benefícios emanados daquele deus. O nome dessa prática mágica é teofagia, amplamente praticada por vários povos que têm como reflexo religioso dominante a magia.

Usamos aqui como exemplo um dos rituais católico apenas por questões didáticas, mas poderíamos igualmente recorrer a qualquer outra religião moderna, o resultado seria o mesmo.

Fica claro pelos exemplos o quanto permeada é a religião moderna pela magia. É importante ressaltarmos que essas práticas mágicas dentro da religião moderna são refinadas, modernizadas de acordo com o tempo histórico, por exemplo, a teofagia nas tribos e outros povos analisados pelos antropólogos utilizava-se de animais ou de próprios membros da tribo. É óbvio que nos dias atuais dentro de uma religião moderna tal uso seria impensável, mas a essência mágica do processo é a mesma.

Por fim, magia e religião são momentos do mesmo reflexo religioso. Por certo período da história predominou a magia, enquanto atualmente predomina a religião mantendo internamente traços mágicos apresentados de forma mais refinada.

Esse refinamento é importante para que tais práticas mágicas sejam melhor aceitas no contexto histórico atual. Fica evidente que não se pode separar religião de magia, porém é preciso entender as características particulares de cada um.

Referências:
Estética - livro I (Lukács), O Capital - Livro I (K. Marx), The primitive culture - researches into the development of mythology, philosophy, religion, art and custom (E. B. Tylor), Ancient society - or researches in the lines of human progress from savagery through barbarism to civilization (Lewis HH. Morgan)