Pousando no amor e sua caricatura do comunismo

Por Quaark

25 de fevereiro - 2024

Imagem: TechTudo

Longe de mim querer reivindicar o papel de crítico da cultura pop, muito menos pagar de sommelier de filmes ou produções audiovisuais diversas. Os únicos motivos para estas poucas linhas é meu debute no mundo dos doramas depois de, confesso, ter resistido por algum tempo. E, pelo fato da primeira produção com a qual eu me deparei trazer algumas referências ao comunismo.

Por sugestão de uma amiga, minha iniciação nesse tipo de entretenimento foi com Pousando no Amor, de Lee Jung-hyo e Park Ji-eun. A série teve sua estreia na Netflix em 2019, obtendo boa aprovação entre o público e a crítica, além de ser premiada no Seoul International Drama Awards, uma espécie de Oscar. Na Coréia do Sul, a novela foi a primeira em audiência no canal TVN e terceira mais assistida da TV a cabo sul coreana.

Eis o enredo. A sul coreana Yoon Se-ri, interpretada por Son Ye-jin, ao voar de parapente é pega por uma tempestade e cai na zona desmilitarizada da Coreia do Norte. Lá conhece Ri Jeong-hyuk, personagem de Kim Tae Pyung, que secretamente tenta ajudá-la a voltar para a Coreia do Sul ao mesmo tempo que acaba se apaixonando por ela.

Uma informação importante sobre o drama e seu enredo, é que tanto a sul coreana Yoon Se-ri quanto seu par romântico, o norte coreano Ri Jeong-hyuk, são membros da elite de seus respectivos países. A primeira é empresária e comanda uma espécie de holding, chamada na Coreia do Sul de chaebol. Isso é quando um conglomerado de empresas é administrado por uma pessoa, uma família ou grupo de pessoas. Já Ri Jeong-hyuk é filho do diretor do Politburo, órgão sobre o qual falaremos mais adiante. Por hora, basta adiantar que nos países que tentaram a transição ao comunismo este órgão era o mais poderoso politicamente.

Virou senso comum, graças a mídia em geral, que os países chamados comunistas são miseráveis e transbordam de corrupção. A maioria das pessoas compram essa caricatura sem questionar, o que é compreensível num contexto de domínio do capitalismo. Pousando no amor, como uma produção e um produto do capitalismo, não poderia ficar de fora dessa regra geral. Embora não seja a intenção, digamos, política e intelectual de depreciar o país vizinho, o drama expressa também a conhecida caricatura de país comunista miserável.

A pequena Vila Militar, na qual mora Ri Jeong-hyuk, é onde mais se retrata no dorama o estereótipo do país comunista. Na cena que mostra a chegada – por acidente – de Yoon Se-ri no vilarejo, fica claro o choque que a personagem tem ao se deparar com condições de vida tão inferiores às que ela tem costume de ver na capitalista Coreia do Sul. Aqui os roteiristas recorreram ao clássico: pessoas com bilhetes para receber alimentos. Com isso a cena passa a ideia da pobreza, da escassez de alimentos que seria a realidade de um país comunista. Logo em seguida são exibidos dizeres de adoração do líder comunista e crianças marchando para a escola, retratando uma suposta formação militarizada das crianças.

Um outro elemento usado no contexto da Vila Militar é a falta de energia elétrica, esse elemento aparece diversas vezes ao longo da série. Como consequência do problema de fornecimento de energia elétrica – também –, produtos eletrônicos não fazem parte da realidade da Vila Militar. Sempre é mostrado nas cenas os moradores cozinhando, lavando e realizando outras tarefas manualmente, sem recurso à eletrodomésticos. Até Seo Dan (Seo Ji-hye), filha de mãe abastada, em um dado momento do drama se muda para um apartamento que, mesmo de elevado nível e acessível apenas para pessoas da elite econômica como ela, dispõe de fogão a lenha.

A essa altura devo ressaltar que, ao contrário do que a série induz o espectador a crer, as benesses do capitalismo não são acessíveis para a imensa maioria das pessoas. No capitalismo, seus produtos não são destinados a quem deles necessita, mas a quem pode pagar por eles. Os alimentos não são para quem tem fome, mas para os que conseguem pagar por ele. Ao fazer contraste entre a miserável Coreia comunista, Pousando no amor deixa escapar esse pequeno detalhe da sociabilidade do capital.

Um detalhe interessante na série e que chega até a ser cômico, é o fato de os personagens da norte coreanos sempre se tratarem por ‘camaradas’, em clara alusão ao tratamento entre os comunistas soviéticos. Além disso, os comunistas do dorama são em sua maioria retratados como ingênuos ou, como ‘matutos’, para usar um termo brasileiro bastante conhecido no nordeste.

Um outro recurso que Pousando no amor utiliza para caricaturar os comunistas é a repressão. Para o drama sul coreano, a perseguição e fiscalização constante fazem parte do dia a dia comunista. Jeong Man-bok, interpretado por Kim Young-min, é um funcionário do Estado cuja função é monitorar conversas e fazer escutas para os militares norte-coreanos. Por ser uma espécie de delator, de dedo-duro, Jeong Man-bok é mal visto na Vila Militar.

Bom, mas se for para falar de escutas posso lembrar aos caros leitores de que os Estados Unidos – que até onde sei não é comunista –, o supra-sumo da liberdade na cabecinha de muitos por aí, grampeou Dilma Rousseff, na época presidente do Brasil. Não só ela, mas vários de seus ministros e pessoas ligadas ao Banco Central. Isso para ficarmos apenas em um exemplo.

Há também, nessa mesma linha, um serviço de inspeção que é realizado aleatoriamente, com a finalidade de encontrar alguma irregularidade. A cena da inspeção mostra o constrangimento e o temor das pessoas em terem suas casas sendo inspecionadas por militares. Em uma dessas inspeções é encontrado uma panela elétrica, produto oriundo da Coreia do Sul e, portanto, não aceito por representar o capitalismo. Mas a personagem líder da Vila Militar faz vista grossa para o achado, por se tratar de algo que ela também gostaria de ter.

É possível notar em Pousando no amor, uma ênfase, por assim dizer, na violência, corrupção e arbitrariedade entre os militares norte coreanos. Chama bastante atenção as prisões sem qualquer processo de investigação ou de direito de defesa por parte do preso – que no caso torna-se imediatamente condenado. E para piorar o cenário, para que se comprove as acusações, utiliza-se de tortura em locais temidos pelos personagens. A fama desse tipo de lugar é que, uma vez entrando lá, dificilmente se sai com vida.

Nem preciso lembrar aqui de vários países imperialistas que se julgam no direito de, simplesmente invadir outros países, destruí-los, depois financiar sua reconstrução. Um negócio extremamente lucrativo hoje em dia. Não por acaso o nosso querido Tio Sam é um dos empreendedores de maior sucesso nesse ramo.

Mas nesse ponto, é importante assinalar que, não o comunismo como aquele movimento do real descrito por Marx e Engels, mas a forma através da qual figuras como Stalin se portaram nas tentativas de transição ao comunismo, podem muito bem terem servido de mote para a série. É de conhecimento quase que comum a quantidade de assassinatos cujo sangue estaria nas mãos de Stalin. Apesar disso, o modus operandi stalinista não resume nem de longe o socialismo ou o comunismo. Assim como naquela quadra histórica, hoje os comunistas sérios reconhecem os graves problemas de Stalin assim como as consequências deles para o movimento comunista que o sucedeu.

E por falar naquele que ficou de caveira para os acusadores anticomunistas, o drama sul coreano nos apresenta o temido diretor do Politburo, cago que, na URSS chegou a ser ocupado pelo próprio Stalin. Na série, o personagem Ri Choong-ryeol (Jun Gook-hwan), pai de Jeong-hyuk, ocupa o cargo no partido comunista norte coreano.

O Politburo na URSS era composto pelos principais membros do comitê central do partido comunista. Por dispor das figuras mais relevantes, era órgão de extremo poder de decisão, se sobrepondo até ao comitê central em muitas ocasiões. Pode-se dizer que, tomando por exemplo a URSS, o Politburo comandava o partido comunista e o próprio Estado, tamanho era seu poder.

Parafraseando Marx e Engels, as ideias dominantes são sempre as ideias da classe dominante. Como já assinalamos, num contexto de capitalismo como forma dominante da organização da produção da riqueza material, produções como Pousando no amor não podem ficar ideologicamente à margem da defesa, ainda que velada, do capital.

Nesse sentido, o capitalismo é retratado na série como o ideal a ser atingido pelos pobres e sofridos comunistas norte coreanos. Quando os soldados – e amigos – do protagonistas se deslocam até a vizinha Coreia do Sul, ficam extasiados com as maravilhas do capitalismo. No capitalismo não falta energia elétrica, tem acesso à internet, máquinas modernas, jogos eletrônicos e uma infinita variedade de fast food.

Ocupada em mostrar o contraste entre as duas Coreias, claro, ressaltando a maravilhosa Coreia do Sul capitalista face à miserável Coreia do Norte, Pousando no amor esquece de ilustrar que o capitalismo mata uma criança a cada quatro segundos. Isso segundo dados de um dos relatórios da própria FAO, órgão da ONU dedicado à fome, chamada elegantemente de insegurança alimentar.

O dorama também não mostra que na Coreia do Sul a taxa de suicídio chega a mais de 158% em relação a vizinha comunista. Maravilhas do capitalismo? Parte significativa dessa triste estatística está ligada à enorme pressão que a população sul coreana sofre com relação ao trabalho e a expectativa de sucesso financeiro. Além disso, a chamada ditadura da beleza é outro fator que, inclusive entre os próprios jovens, tem contribuído com esses números.

A indústria da beleza, na busca desenfreada por lucro, produz nas pessoas que não conseguem se adequar às exigências mercadológicas uma profunda negação de si mesmos. Até chegar ao extremo! Na capital Seul, a ponte Mapo sobre o rio Han, é internacionalmente conhecida pelo grande número de sul coreanos que vão até para pôr fim às suas próprias vidas.

Para além desse lamentável cenário que, se não criado pelo capitalismo, é sem sombra de dúvida muito bem alimentado por este, Pousando no amor acaba brindando os dorameiros com uma “ótima” caricatura – desta vez – de uma família burguesa.

Para começar, Yoon Jeung-pyeong teve aventuras amorosas fora do casamento, de onde nasce Yoon Se-ri. Nossa protagonista foi desde criança rejeitada pela madrasta, a senhora Han Jeong-yeon. Quando ainda criança, Yoon Se-ri foi abandonada por Han Jeong-yeon, que se arrepende em seguida.

Em todo o desenrolar da trama, as cenas envolvendo esta família giram em torno da disputa pelo comando dos negócios. Ou seja, o que move a família são os negócios, o lucro. Como consequência disso, cada meio irmão de Yoon Se-ri procura uma forma de, ainda que por meios não legais e muito menos éticos, alcançar o comando das empresas. Ao mesmo tempo em que estão envolvidos em violência contra funcionários e negócios com golpistas. Eis a nada afetuosa família capitalista.

Apesar de tudo, há elementos positivos a serem ressaltados. Por exemplo, quando Pousando no amor mesmo se esforçando para apresentar a miséria do comunismo, termina por mostrar que é justamente no país comunista vizinho, entre desconhecidos, que Yoon Se-ri encontra o verdadeiro afeto e a amizade de pessoas simples. É lá que ela recebe atenção e cuidado, não por interesse em dinheiro, em lucro ou em alcançar alguma vantagem, mas sim por ser humano, e enquanto tal merece ser tratada com humanidade, no melhor e mais pleno sentido da palavra.

Entre os comunistas o ‘valor’ de Yoon Se-ri estava no seu ser, e não em suas posses materiais, no seu ter.

É válido ainda destacar, para concluir, que Pousando no amor sinaliza ainda que muito tenuamente, a intenção dos coreanos em geral pela unificação da Coreia. Claro que, na perspectiva do dorama, essa unificação só pode ter como pólo dominante a Coreia do Sul. É fato histórico que a separação da península coreana em duas, não é algo que esteve muito no interesse das pessoas de modo geral, tendo atendido mais aos interesses de grupos e pessoas poderosas envolvidas em conflitos bélicos. Tal separação, inclusive, vem do fim da Segunda Guerra, relativamente recente.

Por enquanto era isso. Apesar das críticas, eu recomendo para quem ainda não assistiu, vale a pena. A produção é boa.