Teleologia e os três momentos do trabalho

Por Quaark

29 de fevereiro - 2024

Imagem: World History

Primeiro, aos recém iniciados e aos desavisados, um importante alerta: não confundir teleologia com teologia. A última trata-se de uma pseudo ciência que munida de técnicas e métodos de pesquisa, parte de pressupostos totalmente antropomórficos assumindo-os como fatos, para a partir disso tentar argumentar principalmente em defesa da existência de Deus.

A teologia, como diz o esteta húngaro Georg Lukács, não consegue se desvencilhar das bases mágicas da religião, do seu caráter subjetivo e antropomórfico. Parafraseando Marx, a teologia considera como fato aquilo que ainda deveria demonstrar, chegando em alguns momentos da história a recorrer à lógica formal como tentativa de legitimar seus pressupostos Um exemplo disso é o argumento do motor imóvel de Aristóteles utilizado por São Tomás de Aquino.

Pois bem, essa teologia nada tem a ver com a nossa teleologia. Esta trata-se, grosso modo, da capacidade humana de pré-idealizar algo antes de executá-lo na prática. Vamos pegar o carpinteiro como exemplo. Imagine que este precise construir uma cadeira, antes dele de fato iniciar a construir a cadeira ele imagina como deve ser a tal cadeira. Esta poderá ser mais alta, mais baixa, ser usada como balanço, se será sustentada por três ou quatro pernas etc. Parece uma capacidade simples, mas é extremamente importante e única e exclusivamente humana.

Aqui, poderíamos até pensar que uma colméia ou uma teia de aranha, pela beleza de sua construção, a precisão dos detalhes, seja algo planejado. Porém, de fato não é. Como Marx diz, por mais inveja que essas lindas construções da natureza possam causar ao mais renomado arquiteto, a grande diferença é que as abelhas sempre construirão sua colméia no mesmo formato, já o arquiteto, tem a capacidade de criar o novo. O que a abelha constrói está determinado biologicamente, ao contrário do ser humano que tem seu agir determinado socialmente, historicamente.

Entendido basicamente o que é teleologia, precisamos distinguir entre teleologia primária e teleologia secundária. A primeira é aquela presente no trabalho, ou seja, no processo pelo qual o ser humano, mediante uma necessidade objetiva, transforma a natureza, e, por consequência, a si próprio.

Voltemos ao nosso carpinteiro para exemplificar. Mediante uma necessidade concreta e objetiva, qual seja, de dispor de uma cadeira sobre a qual possa sentar, o carpinteiro pré-idealiza esse objeto em todas as características possíveis. Porém, para que ele consiga de fato construir essa cadeira que até o momento existe apenas em sua imaginação, ele precisa de madeira.

Vamos considerar que nosso carpinteiro está lá na idade média, onde não havia ainda a enorme complexificação da produção. Ele próprio terá que adentrar na mata para procurar a melhor árvore, em seguida derrubá-la, depois rebaixá-la e por fim tirar as partes da árvore que ele julga adequar-se à sua ideia de cadeira.

Com esse tipo de processo, o carpinteiro está diretamente transformando a natureza, modificando a paisagem ao seu entorno. Se considerarmos isso em uma escala macro, o mesmo processo pode levar a interferências no clima, na vegetação, etc. Onde antes era mata pode vir a ser pastagens, que por sua vez pode ser usada para a criação de animais que antes não se poderia fazer com a floresta.

Já a teleologia secundária, está ligada a processos que não interferem diretamente na natureza exterior como o descrito acima. Um bom exemplo seria a atividade docente. O professor pré-idealiza o seu ato de ensinar, sua aula e que estratégias utilizará para abordar determinado conteúdo. Porém, ao executar essa sua prévia ideação, não se atuará diretamente na natureza como dissemos linhas acima. O conhecimento repassado aos alunos pode até em um momento futuro e por uma série de mediações levar à transformação da natureza, mas não será de forma imediata como o é na teleologia primária.

De outro modo, podemos distinguir as duas formas de teleologia de maneira mais genérica da seguinte maneira: teleologia primária é uma relação consciência-natureza, enquanto a teleologia secundária é uma relação consciência-consciência.

Lukács afirma que não há trabalho sem teleologia, ou seja, esta é a condição para aquele. Mas para entendermos um pouco mais a posição da teleologia no processo de trabalho, é necessário aprofundarmos um pouco mais a conversa sobre a própria categoria trabalho.

Com base em Lukács, dividimos o trabalho em três momentos, são eles: a prévia ideação, busca pelos meios, e, exteriorização ou objetivação. O primeiro momento é aquele em que nosso carpinteiro pensa, imagina a cadeira que ainda irá criar, ou, que possivelmente irá criar. É nesse momento que o indivíduo depende da capacidade teleológica, repetimos, capacidade exclusiva do ser humano

O segundo momento do trabalho é a busca pelos meios através dos quais a ideia da cadeira poderá se materializar. Aqui é importante destacar o seguinte, nosso carpinteiro terá a sua disposição o que está posto pela natureza exterior, ou seja, uma floresta mais ou menos densa, com árvores de madeira pouco ou mais resistentes. O carpinteiro, para escolher entre as opções postas, precisará ter um conhecimento ainda que mínimo desse seu entorno, por exemplo, para optar por derrubar a árvore que vai atender a sua ideia e necessidade de cadeira

É interessante que o carpinteiro tem a liberdade de escolha, mas essa liberdade é condicionada ao que está posto no seu entorno. Ele jamais poderia escolher entre um eucalipto e uma aroeira em uma região geográfica que não dispõe desses tipos de árvores, dito de outro modo, a natureza posta é o campo no qual se move a liberdade do nosso carpinteiro.

Outro ponto importante ainda nesse momento da busca pelos meios, é a subjetividade do carpinteiro. De acordo com sua história de vida, com seu grupo social, com seus costumes, etc, o carpinteiro pode tomar decisões diferentes diante do seu campo de opções. Por exemplo, se o carpinteiro vive em uma comunidade com uma visão de mundo religiosa fortemente enraizada, ao encontrar dificuldades em derrubar uma determinada árvore, pode julgar que tal dificuldade se deve ao fato dos deuses da floresta não serem favoráveis ao corte daquela árvore.

Isso pode levar nosso carpinteiro a mudar completamente seus planos, e assim, a cadeira pré-idealizada pode se concretizar de uma forma totalmente diferente daquela pensada originalmente. Aliás, é importante ressaltar que a prévia ideação não garante a objetivação nem de modo geral, muito menos exatamente como foi idealizada.

O último momento do processo é a exteriorização, ou objetivação. É o momento no qual, através da utilização dos meios escolhidos, o carpinteiro produz a cadeira, exteriorizando o que antes era apenas uma ideia de cadeira, objetivando o que antes era apenas subjetivo. Aqui é importante sublinhar que a cadeira uma vez objetivada não é idêntica ao seu criador, porém, guarda características específicas dele.

O carpinteiro imprime na cadeira agora objetivada sua ideia de cadeira, o que espera de uma cadeira, se mais baixa ou mais alta, etc, ele tem algo de si naquele objeto, porém, repetimos, não é idêntico a ele. Em outro momento podemos tratar de forma mais aprofundada a relação entre sujeito e objeto.

Por fim, queremos apenas ressaltar que essa divisão do processo de trabalho atende exclusivamente a finalidades pedagógicas, constituindo-se na realidade como momentos de um todo. É importante também pontuarmos que essa análise do processo de trabalho, com esses momentos, já era utilizada por Hartmann e muito antes, de certa maneira, por Aristóteles.

Sem dúvida, pelo próprio tempo histórico e fundamentação metodológica, Lukács pôde aprofundar imensamente essa análise, de modo jamais possível pelos seus antecessores.

Concluindo, ressaltamos que há outras categorias importantes envolvidas no processo de trabalho, como o reflexo e a possibilidade. Em outro momento – possivelmente – falaremos sobre elas.