Eleanor Leacock: religião e escravidão

Por Quaark

11 de fevereiro - 2024

Imagem: wikipedia

Eleanor Leacock, no seu livro Mitos da dominação masculina¹ traduzido para o português pela maravilhosa professora Susana Jimenez, traz uma interessante e assertiva ideia sobre a relação entre escravidão e religião.

Para a autora, a Europa usou por muito tempo a religião como desculpa - e legitimação - para a escravisação dos povos. Nas palavras da antropóloga estadunidense: "A primeira razão para a escravidão foi religiosa, uma vez que conflitos econômicos na Europa foram, por tanto tempo, travados em termos religiosos." Aqui, como está explícito, Leacock não se desvia do pressuposto marxista - devidamente comprovado pela história - da produção da riqueza material como base da sociedade.

A novidade é que, assertivamente, Leacock sinaliza que os próprios conflitos econômicos, que podemos aqui estender ao movimento de acumulação primitiva como um todo, tinham sempre na religião um importante sustentáculo. Isso é evidente ao olharmos para invasão portuguesa no que hoje chamamos de Brasil. A autora ainda ilustra muito bem o papel da religião ao relatar as atrocidades das missões francesas entre os Montagnais-Naskapi, povos que foram alvo dos estudos antropológicos de Leacock.

Aqui no Brasil, como é sabido, toda a cultura dos povos originários foi tida como inadimissível, como indigna aos olhos divinos. Pelo menos segundo o jugo dos europeus. As divindades indígenas foram demonizadas, sua moral vista como totalmente contrária a santa moral cristã. A religião, portanto, foi usada como meio para inferiorizar esses povos e, uma vez demonizados, coisificados, escravisá-los seria quase como uma consequência necessária.

Os povos indígenas e/ou originários até poderiam ser criaturas de Deus, mas certamente, aos olhos dos saqueadores eram inferiores. Isso era a garantia para que fossem tratados como animais e/ou coisas. Assim sendo, deveriam servir aos brancos europeus. Obviamente, a base por trás de toda essa operação era econômica.

Para além disso, podemos buscar elementos dessa aproximação entre religião e escravidão nos primeiros séculos da era cristã, como expôs didaticamente Anibal Ponce². Aproximadamente em 343³, aconteceu o Concílio de Gangra, e em um de seus cânones lê-se o seguinte: "se alguém, sob o pretexto da piedade religiosa, ensinasse o escravo a não estimar o seu senhor, ou a subtrair-se aos seus serviços, ou a não servir de bom ânimo e com toda a boa vontade, que caia sobre ele o anátema".

Tal determinação por parte daquele Concílio tem, por sua vez, fundamento na Bíblia: "Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem a seus senhores por dignos de toda a honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados." (1 Timóteo 6:1).

Um pouco adiante: "Exorta os servos a que se sujeitem a seus senhores, e em tudo agradem, não contradizendo, Não defraudando, antes mostrando toda a boa lealdade, para que em tudo sejam ornamento da doutrina de Deus, nosso Salvador." (Tito 2:9,10). Poderia aqui elencar vários outros pontos, mas acredito que já está suficientemente ilustrato.

Tal relação entre religião e escravidão pode até ser chocante para algumas pessoas, mas ela é de certo modo, esperada. A religião é o complexo social mais reacionário em uma sociedade em dado contexto histórico. Tendencialmente, por tanto, a religião sempre reproduzirá a sociabilidade vigente.

Isso significa que, assim como no capitalismo a religião dominantemente reproduz a sociabilidade do capital, estando a serviço de seus interesses, numa sociedade assentada sobre o trabalho escravo a religião igualmente estará predominantemente a serviço da garantia e reprodução desse modelo de produção da riqueza material.

Por fim, as contribuções de Leacock, para além da importância que têm para compreensão de tantos outros aspectos da sociedade - como a relação entre gêneros -, é extremamente relevanete para entendermos o papel da religião no processo de dominação de uma classe sobre outra. Seja no passado ou no presente.


  • Clique aqui para ler o livro.
  • Clique aqui para ler o livro Educação e Luta de classes, de Anibal Ponce.
  • Não há um consenso sobre a data em que o Concílio de Gangra foi realizado. Para alguns pesquisadores do assunto, o mesmo teria acontecido em 343, já outros indicam como tendo ocorrido em 358, 362, 365 ou 376. A única coisa na qual concordam os pesquisadores, é que o mesmo teria ocorrido entre o primeiro concílio ecumênico, o Concílio de Niceia I (325), e o Concílio de Constantinopla I (381).